Do baú das coisas que não aconteceram

Entrevista para Cosmopolitan, a propósito do “sincericídio”

A verdade e nada mais do que a verdade

(“e que Deus me ajude”, acrescentam os americanos, frente ao juiz)
P: O que é dizer a verdade?
Te respondo com a pergunta-resposta de Pilatos: “o que é a verdade?” (a de Jesus?, a do Sinedrim?, a da lei romana?)
P: Qual é a importância das mentiras “brancas”, do traquejo social (comunicação não é confessionário) :  até onde dizer a verdade?
A chave aqui é “comunicação”: a minha fala depende daquele a quem me dirijo, não de uma noção abstrata de verdade. Por exemplo, vc acabou de voltar do salão e me pergunta: “o que achou do corte que o Wellington me fez?”, e acrescenta: “seja sincero”. Não precisa de um gênio para sacar que a resposta está incluída na pergunta. Mas não apenas neste caso, sempre está. Se eu prestar atenção à pergunta, sempre saberei o que responder, porque toda pergunta carrega a sua própria resposta.
P: Que motivos levam uma pessoa a “sincericidar-se”? Pode existir uma relação entre a culpa cristã e a compulsão por dizer a verdade?
Se prestamos atenção às palavras (e eu presto muita atenção às palavras, até por dever de ofício), assim como homicídio quer dizer “matar um homem” e suicidio “matar a si próprio”, sincericídio deveria querer dizer “acabar com a sinceridade”, ou seja, mentir… Mas, não!, quer dizer fazer-se odiar por ter dito a verdade para alguém que preferiria permanecer enganado. Então, sincericídio em realidade é um suicidio que se comete em nome da verdade. É, contudo, mais complicado que isso, porque alguém que sempre (grifo) diz a verdade, tipo “por princípio”, embora se ampare no imperativo categórico kantiano, no mandamento cristão, ou na moral social para justificar-se, não sabe que está, antes de mais nada, satisfazendo a sua própria crueldade.
Voltemos à “comunicação”: vc encontra a tua amiga Marcela numa festa, a quem não vê há seis meses e diz: “Oi amiga, quanto tempo! você engordou, né?” Quais são as chances, de um a dez, da Marcela ficar ofendida e te odiar a morte pelo resto da vida? …
Acertou!
E ela está certa em ficar ofendida, porque você não fez outra coisa a não ser satisfazer a tua crueldade invejosa para cima dela. Ou seja, a ofensa dela é a verdade sobre você que a tua pergunta-comentário revela. Mas, atenção, eu não digo que você seja necessariamente uma mulher má, a tua satisfação cruel pode muito bem ser inconsciente para você mesma (a maioria das vezes é). Ou seja, aquela história de que “dizer a verdade não ofende” é uma história para boi dormir.
P: Existiria a sociedade sem mentirinhas sociais?
Outro exemplo de pergunta auto-repondida: “não, claro”.
P: Dicas para evitar o sincericídio: o que pensar antes de dizer algo pra saber se é sincericídio ou não? Em caso de dúvida, que perguntas poderíamos nos fazer pra saber se vale a pena falar uma coisa?
Esta se deduz da minha resposta a “que motivos levam uma pessoa a ser sincericida”, ou seja, o seu ódio inconsciente do outro. O único que poderia dizer sobre isto é que não depende do conteúdo do que vc tem para dizer, mas da tua relação com o  teu interlocutor, na hora de abrir a boca. Conheci uma mulher que foi pega pelo marido, na porta de casa, enquanto era beijada por um amante que se despedia dela. Não tinha a menor intenção de machucar o marido, nem pretendia separar-se dele. Perguntei o que tinha dito para o homem, a respeito daquele flagra, e me respondeu: “disse para ele o que ele queria ouvir, e estamos bem; até diria, melhor que antes.” Os moralistas diriam que ela é uma vagabunda mentirosa; eu digo que ela é alguém que não tem crueldade a ser satisfeita às custas do outro e, sobretudo, que sacou a sabedoria da pergunta de Pilatos.