A Ilustríssima de 9/3/19 (Folha de São Paulo) publicou uma resenha do meu último livro, Desler Lacan, escrita pelo professor Dunker, sob a divisa “Livro deixa Freud para trás ao propor volta às origens do pensamento de Lacan”. Como esta atribuição não reflete em nada a tese que o norteia, achei por bem apresentar, da minha própria pena, como se diz, o miolo do mérito do que defendo.
Desleitura
Com o conceito de “desleitura”, que eu de fato tomo emprestado de um crítico de literatura, que por sua vez o garimpou de Freud, pretendo problematizar o que significa leitura e autoria, em geral e particularmente em psicanálise. Ele me serve para sustentar que uma leitura digna do nome — não apenas o exercício de encontrar num texto o já sabido—, é sempre um gesto que comporta uma certa autoria, na medida mesma em que seja possível deixar-se surpreender pelo que se lê. E isso é assim ainda que o leitor suposto possa desconhecer que se fez autor pela sua leitura.
Estava ouvindo Paulinho da Viola, mais cedo, cantar o verso “não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar”[1] e pensei: dá-se o mesmo com a leitura, não sou eu quem me lê, quem me lê é o livro. Penso no psicanalista como um leitor privilegiado, em que está ciente de não ser ele quem “lê” o paciente, mas apenas o lugar onde este pode reconhecer-se como autor-leitor do seu próprio inconsciente.
Portanto, embora seja verdade que faço meu um conceito forjado para a crítica literária, é inteiramente falso que ao me apropriar dele eu esteja aderindo às teses deste último. Não vou me deter nelas por serem por completo irrelevantes para meu propósito. Digamos que ao usar “desleitura” desta feita, faço uma… desleitura de Harold Bloom, que me serve para entender o que Jacques Lacan mesmo fazia com aquilo que lia.
Em suma, a desleitura de Lacan (e aqui entenda-se tanto a que ele faz dos outros quanto a que eu faço dele) significa que se meu livro deixa Freud para trás, como diz a resenha, o faz tanto quanto a “teoria da relatividade”, de Einstein, deixa Newton para trás. Ou seja, este último está incluído naquela, que além de dar conta de todos seus conceitos, possibilita resolver os impasses que, para o cientista inglês, permaneciam irresolúveis.
Desler Lacan é qualquer coisa menos uma exegese lacaniana ou da verdadeira psicanálise, conhecida e comunicada por mim. O autor deste livro que eu assino não sabe a verdade sobre Lacan ou é conhecedor da diferença entre a psicanálise boa e a outra. Trata-se talvez do exercício de deixar-se ser lido pela própria leitura (neste caso, do modo de Lacan abordar as suas próprias referências) e dar isso a conhecer. Não por nada, tudo começou quando decidi suspender a fé no que os professores e os exegetas me explicavam que Lacan “queria dizer”. Jamais faria aos outros o que não mais aceito que seja feito comigo. É isto que eu gostaria que fosse compreendido sobre Desler.
Desleituras
Posso mostrar o que quero dizer —já deixando clara a minha posição sobre a extensão da psicanálise a outros campos—, com dois exemplos freudianos de desleitura: Freud elabora a sua interpretação de uma fantasia inconsciente de Leonardo da Vinci[2] a partir da biografia escrita por Merezhkovsky sobre a vida do pintor, e a justifica, sem saber, a partir de um erro de tradução da versão alemã que ele lera, do original em russo que, por sua vez, traduzia do italiano de Leonardo a palavra nibbio, ou seja, milhafre ou gavião. Como em alemão constava Geier, abutre —e o psicanalista não se interessou em verificar a fonte—, é a partir do pássaro errado que Freud interpreta, de modo injustificado, segundo os especialistas, a fantasia de felação do artista florentino. Depois disso, como a referência “real” da interpretação estava errada, os próprios psicanalistas do círculo freudiano, invalidaram toda a análise de Leonardo, sem perceber que não era a verdade do pintor —já morto havia 350 anos— o que estava em jogo, mas a verosimilhança teórica de uma invenção de Freud: a noção de “mãe-fálica”, que em nada se via deslegitimada pela conjectura sobre o abutre.
Por outro lado, tampouco sabemos o que Leonardo teria feito com esse abutre que Freud lhe impingira, caso estivesse deitado no divã austríaco, mas posso dar fé que uma interpretação errada do meu analista, que mal falava português na época em que eu era seu paciente, a partir de algo que eu disse e ele entendeu mal, atingiu mesmo assim seu alvo, tornando-se, no que me concerne, numa interpretação verdadeira, apesar de estar fundada num erro. É isso que inconsciente significa: a invenção entre dois da verdade de um.
Segundo exemplo, sabe-se que a tese de Freud sobre o pai, fundada na hipótese de Darwin de que os nossos antepassados se teriam organizado em hordas comandadas por um macho alfa, finalmente devorado pelos seus rebentos revoltados, não passa de um mito e nada tem de científica. Ao perder seu fundamento positivo, a tese de Freud sobre a paternidade resulta inválida? Não! A noção de pai simbólico se sustenta pelo seu lugar na teoria e pelo que ela permite como invenção na clínica (heurística, chama-se ao valor de invenção de um conceito especulativo como esse).
O que denomino desleitura, nos 3 exemplos, dois de Freud mais um do meu analista, coincide então com a essência do que os lacaneanos chamam “ato analítico”. Remeter à verdade factual, como fazem os professores, mina a clínica psicanalítica nos seus fundamentos mesmos.
Duas concepções de clínica psicanalítica
A tese central de Desler Lacan, então, além de demonstrar com todo o cuidado até que ponto o psicanalista francês era um desleitor, elaborando a sua teoria mediante a apropriação —como eu com o conceito de desleitura de Bloom— do que precisava do campo dos outros, para fundar o próprio, além disso, sustenta que devemos optar entre duas concepções antitéticas de clínica psicanalítica: uma baseada na ideia de que está tudo dado na realidade do mundo, realidade que é interpretada mediante diferentes narrativas, todas elas perfeitamente históricas. A função do psicanalista, segundo esta concepção, em nada difere da crítica à ideologia que Althusser fundamentava em Marx[3]: basta mostrar ao paciente em que narrativa, desconhecida para ele, está inserido o relato do conflito que seu sintoma representa, para que este seja resolvido.
A outra, a que eu defendo, e para a qual o conceito de desleitura é de fato capital, é uma clínica que não descobre mas inventa aquilo que será analisado, como meu exemplo do “erro” do meu analista sobre a minha fala demonstra. A última parte do meu livro se demora neste ponto longamente mediante a análise de casos clínicos.
A psicanálise é política
Enfim, Desler termina com um capítulo denominado “Sobre a indiferença dos analistas em matéria de política”, no qual tento deixar claro que se existe algo que sim pode ser dito um direito de nascença da psicanálise é o fato de ela ser política. Não por intervir no gerenciamento da Coisa Pública (res publica, donde: “república”), mas por não haver sintoma que não seja social, no sentido de ele ser sempre relacional. De outro modo: não existe para a psicanálise o sintoma individual. Apenas por isso, a psicanálise pode ser dita política por essência.
O que não significa que o ato analítico se confunda com a militância partidária, prerrogativa absoluta do psicanalista enquanto cidadão, não enquanto psicanalista. A sua intervenção puramente psicanalítica, contudo, também pode ser considerada “política” na medida em que ao mobilizar o inconsciente, afeta todo o comportamento das pessoas, incidindo em suas decisões, tanto na esfera privada quanto pública.
É verdade que não considero que o engajamento político de um psicanalista se verifique interpretando o complexo de édipo do presidente da república, supondo-se que com isso se estaria alcançando a verdade recalcada deste último (ainda o exemplo de Leonardo da Vinci). Mas também não interpretaria o complexo de édipo de um paciente a partir da narrativa dos fatos da sua história, sem mais nem menos, pois isto não passaria da aplicação particular de um conhecimento universal, exterior a ele, e não serviria de nada. Como me disse um paciente uma vez: “sonhei que transava com minha mãe… esse sonho não precisa de interpretação!” Pois, sim, claro que precisa. Não temos a priori a menor ideia do que esse sonho significa para ele; apenas sabemos que foi sonhado com o conhecimento vulgar da teoria de Freud.
A meu ver, a potência política da psicanálise se verifica dentro do seu próprio campo, no que ela permite pensar da ação política. Por exemplo, estou escrevendo uma crítica da neutralidade. Pretendo abordar o ideal de pureza que perpassa toda a cena política desde sempre (o título será: “O incorruptível e seus corruptos”); a dermanda de justiça na sociedade, que pode ser pensada como um destino da inveja (ideia primorosa de Freud, que espero poder desenvolver) e por último, o engajamento político em si mesmo. Esta última será uma desleitura da teoria do mal radical de Kant, tomada como instrumento psicanalitico para poder pensar a noção de responsabilidade de um modo que nao seja moral.
[1] Timoneiro. Paulo César Batista de Faria e Hermínio Bello de Carvalho comp.
[2] Freud S. “Uma recordação de infância de Leonardo da Vinci” (1910) in. Obras Completas, vol XI.
[3] Althusser, Para ler o Capital. (1966)
Muito legal seu esclarecimento! Grata!
Obrigado
Complementou , agora sim .
Meu caro, não espere muito de quem se propõe a explicar conceitos de grande complexidade construídos por Lacan ao longo de muitos anos, leituras e reflexões, em cinco minutos via Youtube. Os professores de cursinhos pré-vestibular promovidos a Mestres g(l)ozadores de filosofia e psicanálise compactadas para o povo ansioso por esclarecimentos “científicos” abundam na nossa mídia ignara. Temo que você conceda demasiada importância a tradutores-intérpretes de significados abstrusos em incursões desastrosas na psicologia de eleitores e candidatos, por exemplo, como podem ser a eventual equiparação de Bolsonaro ao “supereu”, de Lula ao “isso” e de Temer ao “eu”. Seu livro desconstrói Lacan. Essa é a única forma de mantê-lo vivo mesmo no pós-estruturalismo. Os dogmáticos, porém, são fascinados pelas exegeses e podem prantear um cadáver por muitos séculos, alheios ao mau odor que a decomposição que promovem não cessa de liberar.
Chatice da porra!
Nossa! Disse tudo, com clareza e bom humor. Também não aceito essas elocubrações de certos psicanalistas da Internet.
Amei o post <3 Continue sempre assim e irei seguir o blog <3
Olá, caro Ricardo. Uma dúvida: ali, onde você escreveu Harold Bloom, a referência seria a Leopoldo Bloom, do Ulysses de Joyce? Obrigado e parabéns pelo texto.
não, é Harold Bloom mesmo, o crítico literário americano