Talvez a primeira grande teoria que representou a passagem da alquimia para a química, em finais do século XVII, tenha sido a teoria do flogisto, de Stahl. Antes da descoberta do oxigênio, aproveitada por Lavoisier para derrubá-la quase um século depois, a combustão explicava-se pela liberação de uma substância invisível contida nas coisas inflamáveis, que ao soltar-se do seu continente pegava fogo. Já na física, a hipótese alquímica dos cinco elementos perdurou até Einstein dispensar o último deles, o éter, para explicar o deslocamento das ondas eletromagnêticas no vazio interestelar. Até então, bolavam-se experimentos para detectar o vento etéreo causado pelo deslocamento dos planetas.
A teoria freudiana das paixões, que substituiu os espíritos animais de Descartes pela hidrodinâmica de um fluído hipotético, invisível, sem peso conquanto viscoso, a circular pelo corpo, e que ao aderir-se a determinadas representações de objetos externos causava os afetos humanos, afigura-se-me bastante semelhante à flogística. A sua acumulação, quando impedido de ser evacuado mediante ações concretas de descarga, responde por afetos dolorosos como a angústia e, a longo prazo, por afecções dos nervos duradouras conhecidas como neuroses.
130 anos passados, em pleno século XXI, depois da relatividade e da mecânica quântica; dos aceleradores de partículas e da descoberta do boson de Higgs; das fotos dos ecos dos primeiros segundos do universo, dos supercondutores, da biologia molecular, da nanotecnologia, do gps e de um robô andando pela superfície de Marte, os psicanalistas de todas as filiações pós-freudianas ainda acreditam na existência de pulsões movidas a libido, localizadas, não já na glândula pineal, como a alma para Descartes, mas em algum local místico situado “entre o psíquico e o somático” (tal como a imagem de um telescópio, ilustrava Freud, formada entre as lentes), a funcionar como causa material daquilo a que Kant chamava de “vontade”.
É verdade que a libido, recuperada por Freud dos poetas latinos para a sua mecânica hipotética da alma, no espírito da física de Helmholtz, foi como que uma premonição da testosterona, descoberta em 1935 ou da endorfina, isolada em 1974. Também é notável que tenha entrado talvez mais que o inconsciente (ainda denominado “subconsciente”) na cultura popular e até na bula de alguns remédios. O Citalopram, por exemplo, lista entre seus possíveis efeitos colaterais uma diminuição da libido. Com este espírito brincávamos com meu querido amigo Ricardo Estacolchic de termos descoberto o componente do sangue responsável por alguem tornar-se um loser. O denominamos “perdedorina” e nos imaginávamos ganhando o prêmio Nobel de fisiologia ao bolar a vacina para contrarrestar as altas taxas de perdedorina causadoras da ruína de tanta gente conhecida.
Alguns defensores mais modernos da teoria pulsional se encomendaram aos santos da nova genética e dos scanners da atividade neurocerebral para repaginar a pulsão em termos de programas instintuais, enquanto outros, ainda acanhados, e por falta de um conceito melhor, a qualificam de metafórica ou figurativa. Oscar Masotta, por exemplo, com elegante verônica de toureiro, ensinava que ao falar da energia pulsional Freud simplesmente “queria dizer” que… o desejo é enérgico! Outros, ainda, como Reich, que preferia chamar esta substância de orgônio, a tomavam ao pé da letra, a ponto de inventar baterias para recolher a energia gerada pela combustão provocada pela sua liberação, num movimento new age avant-la-lettre, lindamente recuperado pelos (agora, pelas) cineastas Wachevsky, no filme que não por acaso denominaram, em inglês, “A Matriz”, onde um super-computador transformava a libido posta a circular pelos sonhos de pessoas dormidas na força necessária para alimentar seus circuitos.
Pela étimo, “libido” vem do indoeuropeu, leubh, de onde se originaram palavras como love, em inglês ou lyubóv, em russo. Para os latinos, libido libidinis não se referia ao amor romântico mas à vontade intensa de posse de algo. A sua conotação era antes pejorativa que idealizada e estaria mais aproximada de gana, de capricho ou de obcecação que de amor. Em todo caso, não se referia especialmente ao apetite sexual.
Uma das primeiras menções da palavra libido na literatura latina, encontra-se num poema de Catulo, lá pelo ano 60 AC, no qual sem aguardar pela correção política, já adverte as mulheres de se precaverem das juras de amor masculinas: sed simul ad cupidae mentis satiata libido est, dicta nihil metuere, nihil periura curant. Ou seja, “mas saciada a libido em sua mente cúpida, não temem a promessa, nem se cuidam do perjúrio”. Nada de novo sob o sol.
Freud fala em “libido” no primeiro parágrafo do primeiro dos Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade – “As Aberrações Sexuais”. Para a pulsão de nutrição temos a palavra ‘fome’, mas na linguagem cotidiana não há uma palavra equivalente para a pulsão sexual e assim a “ciência utiliza a palavra ‘libido’ para este propósito”. Ao final do primeiro item deste ensaio – “Desvios em Relação ao Objeto Sexual” – onde ele disserta sobre a inversão e a bissexualidade -, há uma nota de rodapé acrescentada em 1910:
A diferença mais surpreendente entre a vida erótica da antiguidade e a nossa própria sem dúvida reside no fato de que os antigos enfatizavam a própria pulsão, enquanto que nós enfatizamos o objeto. Os antigos glorificavam a pulsão e eram capazes de exaltar mesmo um objeto inferior; enquanto que desprezamos a atividade pulsional nela mesma, e achamos uma desculpa para ela apenas nas qualidades do objeto.
Convidado a redigir o verbete Libido para a Enciclopédia Britânica, escreve: “Libido é o termo empregado na teoria das pulsões para descrever a manifestação dinâmica da sexualidade”. Krafft-Ebing, em sua famosa Psychopathia Sexualis, livro cuja primeira edição foi publicada 1886, e da qual o exemplar do fundador da Psicanálise data de 1892, já usava a noção.
Já os epígonos de Lacan, sensíveis ao convite de fazer entrar a psicanálise no século vinte, mas sem decidir-se a abandonar as categorias freudianas, ficaram atolados no pântano de uma composição impossível, levemente gnóstica, que lembra o uso que foi feito da mecânica quântica para abonar crendices new age, como por exemplo a de que as propriedades moleculares da água das torneiras vaticanas muda com a benção do Papa. (Assim como o observador muda a onda de probabilidade de um elêtron com a sua observação!). No caso do freudolacanismo, explica-se o gozo mediante a pulsão; no do lacanofreudismo, a pulsão mediante o gozo. Tanto uma quanto a outra leitura são sintomâticas da impossibilidade de abandonar o paradigma naturalista de Freud, e ambas deixam escapar tanto a novidade anunciada por Lacan ao introduzir o gozo na psicanálise, quanto os motivos que o levaram a inventar um conceito tal.
O lacanofreudismo, por exemplo, oferece, a título de formação de compromisso, uma composição sincrêtica para dar razão ao gozo: teriamos no cardápio a substância extensa tridimensional, correspondente ao corpo; a substância pensante imaterial, correspondente à alma (apelidada de “sujeito”), e a substância gozante, que não passa de outro nome para a pulsão (localizada “entre corpo e alma”). Passons…, como diria o francês.
Gostaria de sugerir outra alternativa, que não fosse nem uma, nem outra: se o campo da psicanálise for do gozo, como Lacan queria —estando o campo freudiano incluído nele (a recíproca não sendo verdadeira)—, isto comporta abandonar tanto a dualidade cartesiana quanto a formação de compromisso pseudocientífica da pulsão freudiana (mesmo e sobretudo quando apelidada de “substância gozante”).
O campo do gozo não é o nome de outro modelo epistemológico da psicanálise, mas o que ela funda ao instituir seu sujeito e seu objeto mediante seu método. O discurso psicanalítico faz existir campos de gozo sobre os quais opera. Nos aproximamos desta ideia ao dizer que a transferência é um campo onde já não cabe distinguir o analista do seu paciente, ou que o inconsciente não é do paciente ou do analista, mas da análise.
Trata-se da efetuação da ética psicanalítica, cuja ontologia precisa ser especificada (não basta, nem de longe, adjetivar esta última de “negativa”). A única ontologia que poderia se propor para a psicanálise é a sua operação mesma —apelidada de “ato analítico”—, que eu chamei em outro lugar de desontologização. Por outras palavras, a psicanálise propicia a desconstrução da ontologia espontânea e cotidiana de todos nós devida ao fato de falarmos (e que não por acaso é aristotélica). Tal desontologização consiste na produção do seu real, isto é, da efetuação do limite do simbólico em cada caso particular, apresentado fenomenologicamente como o sintoma de cada qual. Fora da sua operação, a psicanálise não passa, na melhor das hipóteses, de um método de leitura crítica, e na pior, de mais uma filosofia ou antropologia capenga que não morde nenhum real. Uma perda de tempo, enfim.