O significante, dizia Lacan, representa o sujeito para outro significante. Esta fórmula, este encantamento, repetido durante trinta anos até a exaustão, mostra, sem explicar, a concepção lacaniana de linguagem —esse lugar transcendental, onde subjetividade e significante permanecem enlaçados em mútua remissão. Parece a estória do ovo e da galinha, mas não é, porque a linguagem precede o sujeito. Como em Kant a Lei, não se pode perguntar de onde vem a linguagem; ou melhor, perguntar pode, mas não teria sentido; esse tipo de enigma (querer saber o que havia antes de tudo ou além do infinito) só pode responder-se mediante um mito.[1] O aforismo que comento carrega embutida uma crítica do conceito clássico de representação, não obstante isso, deixa sem decidir a posição dos conceitos que utiliza.[2] Diz o que o significante faz: representar o sujeito, mas não o que é. Tampouco define a natureza do sujeito assim representado.
Hoje em dia o significante lacaniano anda bastante desacreditado; o estruturalismo decadente parece tê-lo arrastado na sua queda, apesar dos esforços do mestre e dos discípulos por cortar as cordas que o ligavam ao movimento. Muitos dos que viam no lacanismo o futuro da psicanálise, acharam chegada a hora de abandonar o carro chefe do estruturalismo à sua sorte e partir para novos paradigmas. Antes de seguí-los no seu desencanto, seria mister indagar se existe acordo sobre o que deixamos para trás. Corremos o risco, senão, de acreditar que a crítica de De Saussure inclui sem mais a de Lacan, o que não me parece fazer jus à enorme transformação conceitual operada por este ao trazer o significante para dentro do campo da psicanálise.
Não tenho a intenção de retraçar aqui o caminho desta metamorfose —quem estiver interessado lerá com proveito, entre outras coisas, L’amour de la langue, de Jean-Claude Milner—, em vez disso, desejo fazer uma observação sobre um dos motivos da decepção com o significante lacaniano deste lado do Atlântico. O motivo é este: não levamos em consideração tanto quanto seria necessário o fato de não sermos (ainda) franceses. Os exemplos vindos de além mar, com efeito, induziram muita gente a assimilar o significante a certas propriedades da linguagem falada, em particular, à homofonia. Como nossas línguas não se prestam com facilidade às homofonias, estas pessoas foram levados a concluir que, igual que certos vinhos, o bom significante era coisa rara por aqui. Quem pensa que exagero se dará ao trabalho de ler os depoimentos clínicos dos denominados “lacano-americanos”; notará com facilidade a tendência a apoiar o significante nos trocadilhos e nas homofonias, ainda que isso comporte alguma violência sobre as flores vernáculas do Lácio. Se na década de cinqüenta recomendar a um jovem analista que fizesse palavras cruzadas [3] fora um ato de transmissão de primeira grandeza, o mesmo conselho, hoje, contribui mais para os descaminhos do iniciante que para sua orientação.
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Conforme o modelo clássico determinista de Freud pensaríamos, por exemplo, que o inconsciente de tal paciente fora o responsável pelo desastre de carro em que se viu envolvido. O motorista não teria saído para passear mas, possuído pelo seu demônio interior, para bater. Como já escrevi em outro lugar, prefiro uma leitura menos animista do inconsciente. Prefiro pensar que o acidente permanece acidental, até o motorista conjecturar durante uma sessão que destruir o carro que ganhara do pai era (podia ser) uma mensagem dirigida a este último. A batida tornara-se um significante depois da ocorrência —da ocorrência discursiva, não rodoviária—, significante do desejo paterno. A psicanálise é o trabalho de discurso que transforma o azar em acontecimento. Quase diria que o mal encontro na estrada foi o pretexto para o motorista inventar (não descobrir) o texto com o qual rescrever a sua história.
Tal invenção é possível porque a transferência, como laço erótico [4] atual do paciente, forneceu ao fato contingente as coordenadas, o contexto, em que pôde ser lido como necessário. Podemos ir ainda mais longe com esta concepção: para que a significação determinista do acidente se impusesse nem era mesmo necessário que o acidentado estivesse atrás do volante. Ainda que o motorista fosse outro, o sujeito continuaria pensando que seu destino nefasto já estava escrito e que o motorista em questão não passava de um instrumento de sua sina. Pouco importa saber o que aconteceu de fato, portanto, porque temos de nos haver sempre com uma leitura. A que o paciente fez e da qual o analista é o destinatário transferencial.
Quando errei de estrada pegando a Rodovia dos Trabalhadores em vez da Bandeirantes, estava apenas me aborrecendo pela minha desorientação; porém, como me analisava na época, este equívoco se tornou, depois de algumas sessões, um verdadeiro comentário sobre minha condição de imigrante. Perdi a viagem a Campinas, mas fiz, da substituição de Bandeirantes por Trabalhadores, uma metáfora. Todavia, afirmar que tal substituição estava escrita antes de eu pegar o carro naquela manhã, seria uma projeção retroativa de minha convicção posterior à leitura do equívoco que se impôs à minha alma. Nem “bandeirantes”, nem “trabalhadores” são significantes; o campo transferencial em que eu estava tomado na ocasião forneceu o contexto para que o acidente fosse legível. Os sonhos não podem ser lidos fora de um campo transferencial; são inertes, como o pedacinho de ferro que não se mexe fora do campo magnético causado pelo ímã. No que me diz respeito, posso acrescentar que o único real que posso constatar de toda esta estória é minha transformação relativa ao ato de viajar; mas, com certeza, ela não se deve a este único significante mas, antes, a uma constelação de eventos discursivos deste tipo.
O que possa dizer, depois, sobre tais significantes é sempre uma conjectura e, enquanto tal, da ordem da letra, não da do significante. [5] O analista que nos relata determinado acontecimento, durante uma apresentação de caso, não se refere a um significante mas à letra com a qual aquele foi inscrito. O significante não tem qualquer sobrevida posterior ao acontecimento no qual existe.
Em suma, deixando um pouco de lado a preocupação pela “natureza” do mui mencionado significante, digamos que ele é impraticável (ou, se preferirem, não passa de um conceito datado e talvez vazio) sem um tratamento conveniente da língua —conveniente para a experiência da psicanálise, claro. Quero dizer que considero o significante uma operação sobre a língua, realizada dentro do campo da transferência, cujo resultado será um acontecimento de discurso, perceptível só a-posteriori, e que determina de modo inequívoco o “sujeito da enunciação”. [6] Estou propondo, como se vê, uma abordagem heurística do conceito, específica para nossa disciplina. Não pergunto o que é um significante, senão para que pode nos servir.
Para todos os efeitos, no discurso do psicanalista, o significante não existe por si mesmo mas é função de uma leitura. Não é necessário que se trate de homofonias ou trocadilhos; nem é mesmo preciso que haja palavras em jogo, desde que haja um leitor cuja leitura se verifique, posteriormente, como acontecimento discursivo. O tempo do significante é o futuro do pretérito; ele terá sido depois do acontecimento (après-coup), o presente lhe é alheio. Esta definição operacional, restrita, do significante, ainda que vulnerável a várias objeções filosóficas, tem o mérito de chamar a atenção para o psicanalista enquanto agente do seu discurso, como responsável (ou responsabilizável) por um efeito. Nada está predestinado a ser um significante porque é a escuta que o torna tal; qualquer coisa que o analista diga ou faça (ou deixe de dizer ou fazer) durante a sessão pode entrar nesta categoria. Dele depende que o ainda insignificante deixe de sê-lo ou então se perca no mar das estórias. Sua responsabilidade aqui é completa e não pode ser delegada. A transferência, em suma, não se transfere. [7]
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Há trinta e dois anos Lacan dizia que o estatuto do inconsciente freudiano era ético, não ôntico. [8] Que pode significar isso, a não ser que o inconsciente é relativo ao ato analítico e não tem qualquer tipo de existência fora dele? A associação livre, portanto, nada tem de livre e não está dada; ela é, antes, o resultado do conjunto das intervenções do analista sobre a fala de seu paciente. Não estou certo se posso afirmar que o analista deve ensinar o paciente a associar livremente, mas é certo que não todos os tratamentos da fala do paciente permitem que ela se instale.
Semana passada, por exemplo, tive de interromper um paciente que se dedicava a transformar o sonho que acabava de me contar num texto alegórico. Segundo ele, o mar sonhado representava as profundezas de seu “aparelho psíquico”; a flutuabilidade de que dava provas, sua dificuldade para aprofundar-se na análise; os enormes peixes entrevistos lá embaixo, obscuros e inalcançáveis, objetos de seu desejo, e assim seguindo. O paciente ficou algo zangado quando lhe disse que não tinha pedido para ele interpretar seu sonho mas para associar em cima dele. Tinha motivos para sentir-se irritado, no fim das contas esta é sua terceira análise, e já faz como quinze anos que livre-associa sem parar. Em todo caso, uma vez que desistiu do devaneio kitsch a que se tinha entregue, nos encontramos com que, na véspera, assistira um programa na tv a cabo sobre tubarões; seu primo se dera bem, passando para trás todos os sócios; seu pai morrera na pobreza por confiar demais nos outros; e durante um curso de mergulho concluído recentemente teve enorme dificuldade para afundar, “devo ser uma merda”, disse, “não afundo nem com dez quilos de chumbo”. [9]
Não sei aonde chegaremos acompanhando o percurso desta corrente de associações, mas uma coisa é certa, minha observação de que permanecer na superfície não garantia seu afastamento dos tubarões, jogou uma luz sobre suas inibições profissionais que duvido muito fosse possível permanecendo no plano de suas alegorias. Por outro lado, eu jamais poderia ter feito observação tal sem suas associações. Ou seja, embora toda formação do inconsciente seja um enigma, não todo tratamento do enigma serve para pinçar o sujeito da enunciação. Quero dizer que é necessário aprender a servir-se da associação livre; que não qualquer coisa que o analisando diga representa uma abertura para sua enunciação. Digo, também, que uma das tarefas do analista é ensiná-lo a servir-se bem da sessão de análise.
São Paulo, 6/9/96
NOTAS
[1] Obviamente, estou pressupondo aqui que é conhecida a concepção criacionista que Lacan tinha da linguagem; porque para alguém que pensa esta última como um instrumento de comunicação, por exemplo, o problema da sua origen é perfeitamente pertinente.
[2] “Posição”, em filosofía, é o conjunto de determinações de um ente. A resposta à pergunta pelo “ser” de alguma coisa. A resposta a este problema está num artigo, escrito a partir do “Seminário XI”, denominado, precisamente, “Posição do Inconsciente”, que pode ser lido em Écrits, Paris: Seuil, 1966
[3] Cf. “Função e campo da palavra e da linguagem em psicanálise” in Écrits, op. cit.
[4] Tinha escrito “libidinal”, mas está mais do que na hora de reconhecer que a psicanálise é uma erótica (nota de 2020)
[5] Não entro no mérito desta observação aqui, mas Lacan insiste, na década de setenta, que o significante pertence à ordem simbólica, diferente da letra que seria real (os clássicos exemplos sendo tomados das fórmulas físico-matemáticas, que são puros sistemas formais com penetração no real: o Sputnik teria sido, literalmente, a realização da lei de Newton da gravitação.)
[6] Que o sujeito surja do equívoco não quer dizer que ele próprio o seja.
[7] Cf. meu Ensaio sobre a moral de Freud, Salvador, Ágalma, 1994
[8] Seminário XI, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Rio, Zahar, 1983.
[9] Falei deste tratamento, e da concepção de linguagem que comporta, em outro lugar, cf. “‘O inconsciente está estruturado como uma linguagem’ é um argumento de Lacan”, em Boletim de novidades no 67, nov. 1994, ed. Escuta.