Uma vez, durante um daqueles jantares denominados “de confraternização” eu exprimi minha opinião de que proibir os símbolos era uma medida inútil e até contraproducente no combate à causa que o símbolo representa. Eu acredito que se a conversa fosse sobre brasões em geral a questão nem teria sido levantada, porém era da suástica que se falava e do uso que dela fazem nossos periféricos punks.
Do meu lado estava sentada uma senhora que se ergueu como pôde na sua cadeira para me apostrofar. “Se você fosse meu filho,” ela disse, mais para o resto da mesa do que para mim, “eu te esbofeteava! Um judeu de pai e mãe, como você,” continuou, “não tem o direito de ser pragmático! Deixa isso para ela”, concluiu, indicando outra comensal, cujo sobrenome português delatava a cristã nova.
Este incidente me fez lembrar um outro, também acontecido durante um ágape. Um almoço desta vez, no apartamento de um jornalista, do qual eu participava a convite de um amigo comum. Num dado momento o anfitrião contou uma piada sobre negros e, devo confessar, ri. Foi nesse momento que meu amigo levanta, ele com facilidade, e se dirige a mim num tom irado para me dizer que eu, como judeu, não podia rir de uma piada racista.
Tinha esquecido ambas estórias até topar recentemente com a senhora de quem falara no começo no foyer de um teatro. Ela estava com um casal que, depois deduzi, pelo modo como ela me apresentou, devia ser membro da Sociedade de Psicanálise de São Paulo: “Este é o Ricardo Goldenberg, ‘o selvagem’, o ‘analista selvagem’”, esclareceu, no meu benefício e no deles. Nem preciso explicar que ela é candidata a membro da dita instituição e que por isso está preocupada em delimitar quem está dentro e quem fora das jaulas do zoológico psicanalítico.
Este último encontro (mal posso esperar pelo próximo) me fez refletir sobre a natureza do primeiro. Acredito que exista nestes encontros um problema de contagem que tentarei esclarecer. Trata-se com efeito da dificuldade de contar até quatro.
Não pre-julgo quanto à possibilidade de os leitores deste Boletim contarem até quatro, mas imagino que a maioria conheça a teoria de Freud sobre as multidões. Nela Freud ensina a contar até três. Uma multidão, escreve Freud, “é uma soma de indivíduos que puseram um único e mesmo objeto no lugar de seu Ideal-de-eu e estão em consequência identificados uns aos outros em seu Eu”(1). Eis então os três de que falava: o Eu, o objeto e o Ideal. Para esses três funcionarem não é necessário mais do que dois. Dois bastam para constituir uma multidão. Qualquer encontro social portanto está em condições de preencher esta matriz mínima.
Dentre as diversas formas de agrupamento social Freud privilegia uma: a multidão artificial (künstliche) – tal como a igreja ou o exército – bem organizadas e duráveis. São artificiais na medida em que requerem para manter a coesão uma obrigação, que Freud chama de exterior: a obediência a um líder (Fürher) que deve estar presente e nomeado como tal. Esta obediência, que evita a dissolução, está apoiada na ilusão de que não apenas há um chefe supremo como ele ama todos os indivíduos da multidão com igual amor. A comunidade desta massa realiza-se por intermédio de uma relação comum entre os Eus dos indivíduos da multidão e seu líder. Em todos os casos que comenta, a chave da identificação entre os Eus que partilham uma comunidade está no líder.
Este laço comunitário está apoiado na suposição freudiana de uma comunião de substância que viria do fato de todos terem comido um pedaço do pai assassinado (conhecem, imagino, o mito de Totem e tabu). Para um país que, como este, preza tanto e faz da antropofagia a sua bandeira é de capital interesse encarar uma crítica desta incorporação oral imaginada por Freud para definir uma identificação primária, concebida como essência fundadora da subjetividade. A psicanálise lacaniana permite pensar a identificação por outro viés. Não mais como uma identidade de natureza comunicável e referida ao pai comum mas como uma determinação simbólica, ela mesma função de relações de discurso que fundam as associações dos indivíduos dentro da comunidade. Os termos implicados nestas relações seriam os mesmos três freudianos mais um: o sujeito que, para Lacan, não é uma essência mas um efeito do significante.
Meu interesse é situar o “quiproquó” que relatei no começo dentro de um discurso, para mostrar como distribui nossos lugares de fala e, sobretudo, como podemos beneficiar-nos passando de contar três a contar quatro.
Tanto na ceia como no almoço evoca-se o pai da comunidade judaica ao qual eu teria faltado. Primeiro, pela senhora que fala em Seu nome enquanto idische mame. Segundo, pelo amigo que me recorda a etiqueta adequada fora do gueto. Estas duas broncas deviam suscitar em mim a vergonha por ter virado as costas ao pai e o imediato retorno à sua grei, da qual nunca devia ter me afastado. Note-se como ao denunciarem minha exclusão ambas intervenções confirmam a identidade dos seus usuários: um dentro e o outro fora da classe dos judeus. Eles me põem, como se diz, no meu lugar, porque sabem que lugar é esse e, por tabela, conhecem o próprio. Esta certeza é uma miragem porque é precisamente por imaginarem-se com o direito de definir o meu que garantem o deles. A segregação, como se vê, é um fato de discurso. Este define o que poderiamos denominar um “espaço de pertênça”, mediante uma lógica de classes do tipo: “tu és x, logo, teu lugar apropriado é y”. É no movimento mesmo de afirmarem minha “impertinência” que meus interlocutores confirmam a sua pertinência a uma classe “n” e a sua fidelidade ao pai fundador da mesma(2).
Quanto aos proferimentos meus em si, que provocaram aquelas intervenções (um deles é minha risada), pouco importa seu conteúdo, eles foram tomados como signos. Como signos do quê? Da minha condição de exceção à regra do grupo da qual meus interlocutores fizeram-se os guardiões. Ambos falam desde o lugar do dono da verdade do ser do outro. Todavia, se minha enunciação foi assim visada por estas interpelações a la Humpty Dumpty(3), deve ter sido por ambos sentirem-se provocados por mim. Neste ponto a questão vira do avesso e torna-se resposta para ensinar-me que foi meu sintoma, operando o discurso da histeria, que organizou este laço social discriminatório no qual sou menos paciente que agente.
Aqui contudo nos separamos locutores e alocutários, já que, a exclusão simbólica da qual devo considerar-me o agente, em nada autoriza meu irmão, meu semelhante, a ocupar o lugar de senhor, mestre ou Führer que este discurso precisamente questiona. Ou, por outra, graças à reação daqueles dois, que falam comigo como se fossem a voz da normalidade, fico sabendo que eu interrogava o lugar do excepcional. Esse é meu sintoma, interrogar a função da exceção enquanto tal. Acontece que não é bem eu que interroga mas o sujeito do inconsciente que, ao ser levado em consideração, me permite contar: “quatro”.
Contar “quatro”, no que me diz respeito, quer dizer tentar um exercício do judaismo nos meus próprios termos. Não existe para mim, com efeito, outra via para o judaismo que a do meu sintoma. Pretender ficar nos conformes com o universal dos outros (ainda que seja o dos outros judeus) so pode me levar ao impasse. Isso não quer dizer que eu me considere competente para fazer a política social adequada a um sintoma tal, apenas digo que não posso deixar de tentar. Ainda está por ser feita uma leitura psicanalítica digna do nome daquilo que Finkelkraut denomina “judeus imaginários”: aqueles que, como eu, não tiveram qualquer formação religiosa ou tradicional judáica, estão mais ou menos assimilados e separados dos seus ancestrais e não obstante sustentam um inegável laço simbólico com o judaismo. Judaismo sintomático, diria, ou antes judaismo que deve ser reinventado precisamente a partir da singularidade de cada sintoma(4).
Enfim, do fato de meu sintoma planejar uma certa marginalidade não se deduz que quem quer que seja tenha o direito de bancar o Outro desse sintoma para cima de mim. Desta marginalidade considero-me plenamente responsável – é nisso que digo que não apenas posso como devo contar até quatro-. Quanto a meus interlocutores preocupados pela normalidade: se eles se sentiram convocados por mim ao lugar de fiadores da regra universal, a opção de vir ocupá-lo é toda deles. Em todo caso, em nome do combate ao antisemitismo, é por ser judeu que ambos me mandam calar a boca.
São Paulo, 15 de junho de 1994
Artigo publicado no número 7 do Boletim da Editora Escuta.
(1) Lamento pelo (mal) hábito dos leitores, mas insisto em não traduzir das Ich por “o ego”.
(2) Bastaria com não se ter “opiniões-pragmáticas-em-matéria-de-política-anti-nazista” para se ser um bom judeu? Um goi pode estar certo da sua autorização para rir de piadas racistas?
(3) O insuperável ovo de Lewis Carroll é aqui uma referência obrigatória. As palavras significam aquilo que ele deseja que elas signifiquem. Alice: “mas a questão é saber o que as palavras querem dizer…” Humpty Dumpty: “a questão é saber quem manda, pronto”.
(4) Há numa galeria na Vila Madalena quadros e esculturas para testemunhar como um pintor pôde lidar como anâtema judaico que pesa sobre a representação e fazer da sua uma obra incontestavelmente judáica.