Suspense

Suspense  é um anglicismo, vem do substantivo inglês “suspense”; refere-se ao momento de maior tensão no enredo do filme, da peça de teatro, do romance, enfim, de qualquer narrativa. Na origem tratava-se de uma figura de linguagem derivada do adjetivo “suspenso” que quer dizer:

1. Pendurado, pendente.

2. Cessado temporariamente; interrompido.

3. Parado, sustado.

4. Perplexo, irresoluto, indeciso.

5. Gram. Que faz sentido incompleto.[1]

O equilibrista suspenso na corda: conseguirá atravessar o vazio? O suspense não é o terror, embora a fronteira entre ambos não esteja bem delimitada. A iminência da queda é um elemento do prazer do suspense, mas é preciso preservar uma zona obscura, de incerteza, atinente ao desfecho. Não podemos saber demais, apenas o que o autor deseja que saibamos[2]. Desfrutamos por procuração da angústia do vazio que o equilibrista enfrenta na realidade[3]. É nosso representante porque somos, como ele, anjos caídos, desafiando a cada dia, pela nossa postura ereta, o fado adâmico[4]. Encontramos o tema da queda desde nossos pais primordiais, que caem do éden quando sabem, até o coiote da turma do Pernalonga, que não cai enquanto ninguém lhe faz notar que está caminhando no ar; passando pelo Sr. Valdemar de Poe, que só apodrece depois de o hipnotizador permitir-lhe esquecer que já estava morto havia um tempo[5].

Podemos tentar uma primeira aproximação ao suspense definindo-o como o estado provocado pela demora de uma informação que se aguarda, essencial para resolver o impasse subjetivo provocado por esta lacuna. O problema é menos a natureza do que acontecerá que estar ou não à par do que irá acontecer. Conheço alguém que se antecipa em adivinhar a chave do enigma antes que o filme a entregue, estragando o prazer do suspense para si e para os vizinhos. Suspense seria, deste ponto de vista, uma categoria relativa ao saber; melhor, à ignorância.

Quando o tricampeão se espatifou dentro de seu carro; quando o touro espetou o toureiro; enfim, quando o peso-pesado invicto apagou no quinto round, percebemos que nos prendia ao espetáculo, sempre repetido, menos a expectativa de ver o piloto subir mais uma vez no pódio (o matador cortar a orelha da besta; o juiz levantar o braço direito do campeão de sempre) que a renovada possibilidade do “inconcebível”. Depois de um acidente radical (denominado fatalidade, como se estivesse escrito, como se em algum lugar fosse sabido desde sempre) os comentários oscilam entre um “não é possível” e um “estava demorando muito”. Sem ir tão longe, sempre que se confirmava uma das pequenas grandes desgraças que ocorrem às crianças que brincam —vidraça quebrada, braço trincado, roupa rasgada—, o pai, uma vez informado, anunciava ora que “só podia dar nisso”, ora que “já sabia que isso aconteceria”. Nestes últimos casos[6], o suspense fica do lado de quem supostamente “já sabia”; de quem esperava.

1

Suspense se traduz: Hitchcock e Highsmith. Como aquele filmara o primeiro romance desta, Strangers in a train, poder-se-ia imaginar que os alinho; não obstante, eu os oponho. A trama de um se organiza em torno da expectativa de um fato definido e definitivo (a cena do chuveiro em Psicose, digamos); a outra consegue o efeito deslocando a espera: o leitor se preocupa com o dia seguinte, com suas conseqüências sobre os protagonistas. Mesmo um homicídio não passa de um pretexto para Highsmith. As molas do suspense encontram-se alhures.

Hitchcock situa o desencadeamento da violência no desfecho ou, na perspectiva da narrativa, como sua razão. Um diretor, dizia ele, não pode prometer em vão; pode adiar a entrega do que prometeu, mas não pode deixar de entregar, sob pena de perder sua credibilidade e, com ela, o interesse dos espectadores[7]. Hitchcock não frustra seu público da realização do fato anunciado e que resolve a ansiedade da espera. Ninguém pode ficar em suspenso para sempre; a corda há de ser cortada e o espectador cairá. A descarga da tensão: susto ou alívio, é a forma de gozo que o filme promete e entrega.

Enquanto para Hitchcock o fim da expectativa funciona como causa e limite do suspense, para Highsmith é a expectativa do fim indefinidamente adiado que se revela como causa de uma tensão sem limite. Ela faz do leitor um “expectador”. Ao passo que não deixam de acontecer coisas nos seus contos, os eventos narrados não podem ser tomados como a razão de continuar a leitura. Por mais espetaculares que sejam, os fatos não soltam o nó da trama. O leitor fica com a sensação de que o essencial lhe escapa; está em outro lugar, talvez fora do livro, nele mesmo.

Quando revejo um Hitchcock com intenções analíticas preciso fazer um esforço para não me entregar novamente ao puro prazer de sua trama, esquecendo meu propósito inicial. O mecanismo está tão bem montado que, mesmo sabendo o que haverá, não deixo de aceitar o ponto de vista especificado pelo diretor, e que faz a magia funcionar ainda uma vez. Sou seu assistente na acepção da palavra; sem minha colaboração o efeito não aconteceria[8]. Raro, não obstante, ocupar-se com o filme por muito tempo, depois de ter deixado o cinema. Ao passo que nos romances o não realizado nos trabalha por dias a fio. Ela não assusta, como Hitchcock, inquieta. Sua narrativa opera, como disse Graham Greene, antes com nossa apreensão que com nosso medo. Se definimos a angústia como medo do medo, então, estamos perante uma escritura da angústia.

2

Tudo se constrói em torno de um evento traumático que desequilibra um determinado estado de coisas, que poderíamos denominar, de modo geral, a paz familiar; o heimlich  se torna unheimlich. A diferença está em que mestre Hitchcock restabelece no final o equilíbrio do universo subvertido; os enredos da escritora nunca reencontram o eixo. Seu suspense se elabora a partir de um anticlímax inicial, provocado pela revelação logo no começo do crime e do criminoso. Que haja suspense apesar de não termos nada a esperar do romance em termos de eventos surpreendentes; apesar de tudo que podia acontecer já ter acontecido, é o que torna sua escrita tão instigante. O suspense highsmithiano não se produz numa cena que o espectador assiste de fora, da platéia, como uma caçada na qual se convencionou que se torcerá pela raposa e não pelos cães. O suspense resulta de um mecanismo destinado a criar um conflito intra-psíquico no leitor.

Leia-se Resgate de um cão ou O tremor do falsário. O evento da narração, ponhamos: a morte violenta, acontece nas dez primeira páginas. A estratégia para segurar os leitores ao longo das restantes duzentas consiste em mudar de repente a perspectiva sobre a “execução”, que passa de ato de justiça a crime, sem dar tempo ao leitor para desidentificar-se do justiceiro, agora transformado em assassino impune. Highsmith desperta no leitor o neurótico culpado que ele já é. Seus romances deixam o leitor gozar de uma fantasia proibida sem pagar a conta (ainda que o tenha feito por procuração), e depois o abandonam à sua sorte nas mãos do cobrador vindo de seu próprio ideal do Eu.

Hitchcock fez uma operação semelhante em Saboteur (1942). No famoso desfecho no topo da Estátua da Liberdade. O cineasta, que costuma jogar uma cortina de fumaça sobre seus motivos, declara a Truffaut que “há ali um grave erro para toda a cena: não é o vilão que deveria estar suspenso no vazio, mas na verdade o herói do filme, pois então a participação do público teria sido aumentada.”[9] Nada de erro, a chave do suspense daquela cena é justamente a inversão entre o bem e o mal que joga o vilão no abismo e o espectador na angústia.

Sabia o diretor o que fazia? Difícil dizer. Seu filme realiza, não obstante, uma sutil operação de três tempos sobre a identificação do espectador. Primeiro, o sabotador é mostrado como uma figura maligna e desprezível, merecedora da pior das punições. A título de impingir-lhe o merecido castigo e redimir-se da falsa acusação pelos atentados —situação cara a Hitchcock—, o mocinho persegue o vilão durante o filme inteiro. À hora da verdade, porém, acontece o segundo tempo. Uma vez encurralado no topo da estátua contra a tocha da Liberdade, o terrorista aparece sob outra luz, como alguém sem medo e sem ódio —impressão fortalecida pelo fato de ele recuar sem que o outro o intimide até escorregar no vazio. O monstro nada tem de monstruoso, como o M de Fritz Lang (1930). O sabotador parece, no fim, querer a “mesma” morte que nós lhe rogáramos havia um instante[10] . E o herói que o encurrala deixa de ser o legítimo vingador para revelar-se um mero instrumento daquele desejo de morte (“death wish”). Último tempo da seqüência, enfim, o do vilão pendurado da mão gigantesca que segura a tocha sobre a baía de Manhattan. Com a inversão já completada, o bandido deixou de ser a pura encarnação do mal para revelar-se um ser humano inerme e aterrorizado frente à morte. O “herói” (doravante entre aspas) tenta salvá-lo em vão, impotente para impedir a queda final.

A essa altura dos acontecimentos descobrimos, demasiado tarde, que fomos logrados. O cineasta nos vendeu um sabotador odioso, primeiro, para depois angariar nossa piedade, e, com ela, provocar nosso fervente anseio pela salvação do desgraçado. Voto alimentado pela culpa originada nos maus sentimentos que experimentavamos há um instante apenas. Hitchcock se diverte às nossas custas. —Queriam o mal do próximo? Desejavam saborear o cálice da vingança, esquecendo a caridade? (Hitchcock é, sem ironia, um cineasta cristão) Bebam-no, pois, até a última gota! A seguir se deleita mostrando em prolongado detalhe a manga do paletó deste imperdoável —que o “herói” (sempre entre aspas) segura, tentando evitar-lhe a queda— descosturando-se ponto por ponto, até soltar-se deixando o homem despencar no vazio para sua morte.

A chave do suspense está no segundo tempo, o da encenação do desejo demorte. De quem é o desejo de morte? Do mocinho? Do vilão? A montagem da seqüência funciona como uma pontuação que desloca a significação do desejo de matar para o de morrer, revelando assim o horror do primeiro, com o qual tínhamos flertado até então, do modo mais leviano e inconseqüente[11]. “Tomara que caia” tornou-se “quero cair”; momento de espanto em que optaríamos por voltar atrás, se possível fosse. Mas, não é possível.

Esta é a seqüência que Hitchcock teria rodado desta forma por engano. Ainda que o tenha sido (sobretudo nesse caso) trata-se de um verdadeiro retorno do recalcado, porque a reversão do genitivo objetivo para o subjetivo do sintagma “desejo de morte”, que nela se realiza, enfrenta brutalmente o espectador com o cerne de sua neurose, de toda neurose, a saber: não se pode desejar impunemente. Podemos opor ao retorno do recalcado a operação de recalque efetuada por aquela série denominada Death wish, onde um Bronson cada vez mais grisalho elimina, junto com os inimigos, a culpa do espectador e qualquer responsabilidade por este desejo de morte, que não por nada aparece no título com que foi comercializado no Brasil como Desejo de matar, decidindo a anfibologia pelo viés mais confortável para a audiência poder desfrutar de sua agressividade sem remorso. A obvia estratégia deste tipo de filmes (a série Rambo seria mais um exemplo) consiste no maniqueísmo com que o mal é mostrado para não despertar qualquer ambivalência no espectador, para quem o inferno será sempre os outros.

3

 Ninguém faz esta operação melhor que Patricia Highsmith, para quem o inferno decididamente não são os outros. “Estou interessada no efeito da culpa sobre meus heróis”, declara[12]. E qualquer livro seu parece desenvolver-se a partir da tese de que não é preciso nenhum motivo para se cometer um crime. Ao menos, não no sentido em que o entenderiam Hammett e, depois dele, Chandler, para quem a chave está nos móbeis que devem ser desvelados por um Spade ou um Marlowe. A escritora desloca o acento do crime para suas conseqüências sobre o criminoso, ou, de modo geral, do ato sobre o agente. Está interessada, acima de tudo, na subjetivação de um ato terrível que mal dissimula sua gratuidade.

Um escritor que, depois de quebrar a cabeça de um ladrão árabe com sua máquina de escrever, faz de conta que nada aconteceu; um policial espanca até a morte um velho que seqüestrou um cachorro; um marido irritado afoga sua esposa porque flertara com um convidado; um artista age tão culpado depois do suicidio da mulher que os parentes o tratam como um assassino. Estamos perante uma escritura que arruína as razões que o bom senso do leitor vai conjecturando durante a leitura para tornar o crime “racional”. O que aconteceu, aconteceu por nada. O mais incômodo nos seus relatos não é a falta de álibi mas que o culpado não se importe em procurar-se um.

É sobretudo por salientar o injustificado da ruptura das barreiras morais contra a crueldade ou o assassínio que seu tratamento da impunidade —provavelmente sua questão central— resulta tão agudo. Seu trabalho apresenta-se muitas vezes como uma cuidadosa desarticulação de crime e castigo. E não é necessário que reconheça, como faz, sua dívida com Dostoievski para notarmos que o leitmotiv que se deixa ouvir nesta escrita é o tema da culpa. O lugar desta culpabilidade na literatura de ambos é sem embargo muito diverso.

Em O resgate de um cão a propriedade moebiana[13] do discurso transporta o leitor para o lugar mais abjeto da estória. Alguém rapta o cachorro de estimação de uma família e o mata, não obstante ter recebido o resgate exigido. Um policial em sua primeira missão deseja fazer bonito e fica obcecado com a captura do raptor, a quem finalmente encurrala e espanca até a morte. Nada há para festejar, contudo, porque a escritora já nos mostrou a vida do ponto de vista do raptor, que não passa de um pobre coitado talvez um pouco paranóico: fica claro, em todo caso, que trocar sua vida pela do cão não apenas não é justiça como antes parece uma monstruosidade. A reversão de lugares entre inocentes e culpados é tão completa que nos afastamos do “herói” (ainda uma vez, entre aspas) com a mesma repugnância com que toda a sociedade em torno dele o faz. O mocinho foi segregado, nada mais queremos com ele.

O romance se serve da trama para criar um conflito entre nossos princípios morais e o assassino que existe em nós. O suspense deve-se à tensão provocada por este conflito. O leitor que não abandonar o romance terá tempo para amadurecer o que fará com esta outra satisfação com que a autora o surpreendeu e que nem imaginava poder experimentar: o gozo do assassino.

A apreensão, o desassossego a que denominamos suspense —comparável ao estado hipnótico[14]— é induzido por uma operação simbólica sobre nossa identificação imaginária. O que está suspenso, durante o tempo em que dura este estado, é o esteio identificatório do Eu.  Perguntado que fosse, nesse momento, pelo estado em que se encontra, dirá estar na expectativa do que acontecerá com o outro. Este outro sendo a futura vítima, no caso Hitchcok, e seu carrasco, no caso Highsmith.

 

Nota:

O verbo latino ´tacere´ significava calar-se, permanecer em silêncio, e deu lugar ao verbo francês ´taire´ (calar-se). Em nossa língua, derivam-se de ´tacere´ palavras como tácito e taciturno, além de reticência, uma figura retórica que consiste em deixar incompleta uma frase, dando a entender, no entanto, o sentido do que não se diz e, às vezes, muito mais.

A palavra reticência provém do latim ´reticere´ (calar alguma coisa), formada mediante ´tacere´ precedida do prefixo ´re-´, que neste caso tem o sentido de retrair-se para dentro. A troca de ´a´ para ´i´ na passagem de ´tacere´ a ´reticere´ chama-se apofonia e ocorre com freqüência nas raízes latinas empregadas em línguas romances.

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[1] Aurélio.

[2] Em O homem que sabia demais, vale lembrar, Hitchcock nos mostra alguém a quem outros supõem um excesso de informações secretas. O próprio encontra-se nas trevas quanto ao que supostamente estaria sabendo.

[3] Quem já esteve na Disney ou na Universal e fez a experiência de brinquedos de realidade virtual ou tridimensionais experimenta medo ou angústia ao cair, jamais suspense.

[4] E não é bem na Lei de Newton que penso, mas na Lei do Pai que nos separa do corpo materno e nos permite esquecer que fomos objetos caídos antes de nos tornarmos sujeitos. O título com que foi distribuido o filme Vertigo, de Hitchcok, em nosso país é uma verdadeira leitura do mesmo, quase uma interpretação no sentido psicanalítico do termo. Enquanto a vertigem, do título original, indica o sintoma; o corpo que cai, da versão brasileira, indica a fantasia inconsciente que provoca dito sintoma. Em outro lugar fiz uma análise mais apurada desta passagem (“O Ameaçado” in Sobre a Sexualidade Masculina, Salvador: Ágalma, 1996)

[5] E a queda comparece nos seguintes Hitchcocks: Saboteur e o vilão pendurado da mão da estátua da Liberdade; Vertigo; North by Northwest e a perseguição pelo topo do Mount Rushmore; Suspicion e o marido que empurra-segura a esposa quando o carro passa perto do precipício. Para não mencionar as inúmeras cenas em que o suspense se organiza em relação a uma escada ou uma janela.

[6] Cumpre lembrar que “caso”, etimologicamente, quer dizer “o que cai”.

[7] Por isso o cinema de Antonioni nos parece às vezes tão difícil e cansativo, porque exige um público que suporte o progressivo esvaziamento de uma trama prometida no início sem perder o desejo de continuar asistindo. Um público cujo interesse deve passar do enredo para o próprio filme como um objeto digno de ser apreciado enquanto tal, um objeto cinematográfico. A promessa de fatos, comprovamos, depois de asistir metade do filme, não passava de um pretexto para a experiência cinematográfica que ele nos propõe.

[8] Bastaria que eu me identificasse com o assassino para que o “thriller” perdesse a graça. Por isso um recurso utilizado é deixar o matador mais ou menos invisível até o fim. Como identificar-se com uma sombra?

[9] François Truffaut, Le cinéma selon Hitchcock, Laffont, 1966.

[10] Slavoj Zizek, Looking Awry, New York: Knopf, 1993

[11] Lacan teria dito que fizemos a experiência do desejo como desejo do Outro.

[12] Patricia Highsmith, Suspense, São Paulo: Companhia das Letras, 1990

[13] Refiro-me a propriedade topológica de uma superfície em que a frente e o verso estão em continuidade.

[14] Freud define a hipnose como uma incorporação temporária da vontade do hipnotizador, que irá ao lugar do ideal do Eu. A Truffaut, Hitchcock confessa que, com Psicose, ele não fez direção de atores mas de público. Tocando este último “como se fosse um órgão”.

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