Stairway to Heaven

 

conto mallarmargens

 

http://www.mallarmargens.com/2013/06/conto-de-ricardo-goldemberg.html

Stairway to heaven

Para Robson e Lúcia

 

 

 

Sou o último da linhagem dos ”contadores de degraus”. Meu pai, pouco antes de morrer, e ainda em perfeita saúde, tinha decidido nunca mais subir uma escada em sua vida. Não por cansaço ou preguiça, mas numa derradeira tentativa de contrariar, antes do fim, a sina da nossa família. No caso de faltar força no prédio em que eu moro, voltaria para sua casa ou iria dormir num hotel, mas não encararia os 140 degraus que levam do térreo até meu apartamento do sétimo andar. Eu, como ele, também estou condenado a contar e recontar os degraus tanto ao subir como ao descer, todas as vezes que o fizer. Já minhas irmãs nasceram livres de visitar as pirâmides de Tenochtitlán, por exemplo, sem precisar saber que escalaram mil trezentos e sessenta e sete degraus, como eu sei.

Quando era menor, contudo, eu era como elas. Só agora entendo porquê nunca nos acompanhava aos campanários, quando visitávamos igrejas nas viagens que fizemos. Eu pensava então que era por fraqueza que ele nunca subia: nós eramos jovens, ele, com quarenta anos na época, um velho. Mas não era por isso, não era pelo esforço. Ele podia nadar ou correr quilômetros, ou ainda escalar conosco uma montanha. O que ele já naqueles anos da minha infância não suportava mais era ter que se curvar à antiga sina de ter de contar as centenas de degraus duas vezes.

Quando eu era menor, dizia, meu pai chegou a pensar que a maldição tinha acabado com ele, já que até os quinze anos eu ainda não tinha declarado qualquer necessidade de contabilizar degraus. Minha sala na escola, por exemplo, estava num terceiro andar, mas eu, que galgava aqueles degraus dezenas de vezes por dia, só vim saber que se tratava de 54 o dia em que minha mãe brigara com ele e o castigara com a incumbência de assistir a uma reunião de pais que, para sua desgraça, acontecia na sala da nossa classe. Aliás, depois soube que não era por descaso que ele nunca comparecia, mas para não ter que acrescentar mais aqueles degraus aos milhões que já constavam da sua louca contabilidade.
Esqueci de dizer que os degraus contados se acumulavam não apenas de modo horizontal, durante uma vida, mas de modo vertical, ao longo das gerações. Meus tios por exemplo, assim como meu pai, contribuiam com as suas contagens à contagem do meu avô, assim como ele o fizera com seu próprio pai e avô. Até a década de oitenta do século passado, todo esse acúmulo era registrado em enormes livros de capas de couro que enchiam infindáveis prateleiras na enorme biblioteca da nossa casa paterna que, no fundo, era a biblioteca de um livro só, já queao não haver lugar para outros livros além dos encapados com couro marrom, meus pais eram obrigados a ler os outros livros, os verdadeiros, os de literatura, os ensaios, os de poesia, e a devolvê-los às bibliotecas de onde os tinham tomado emprestados ou a presentear amigos ou conhecidos com eles. Não podiam guardá-los. Não havia lugar.
Eu não entendia nem porquê os livros de verdade nunca paravam mais do que algumas semanas em casa, nem porquê nossa monstruosa biblioteca só compartava os “ene” exemplares daquele infinito livro de contabilidade, classificado por ano, por mês e por local. Assim, por exemplo, em 1972, no mês de Fevereiro, constavam quatro degraus do café Paruggio, na Via Pastenaccha 45, e 457 da Torre de Pisa.
Embora achasse uma esquisitice inofensiva, minha mãe se envergonhava um pouco de uma conduta que muitos reputavam uma reles neurose que devia ser tratada por um psiquiatra. Foi por isso que eu só vim a saber da herança que me esperava aos dezassete anos, quando por curiosidade decidi (acreditava eu) contar a escadaria que há no Parque Güel, em Barcelona, durante uma viagem com amigos.
Eu estranhei o fato de meu pai gelar e minha mãe sair da cozinha, onde estavamos conversando, quando comentei, como quem não quer nada, a existência de uma rampa com 265 degraus na entrada lateral do parque. Depois disso, meu pai veio com um dos odiosos catataus marrons e me fez escrever, solenemente, meu nome, a data, o local e acrescentar a cifra 265 a um número com tantas casas decimais que lembrar dele me dá vertigem até hoje, embora já tenha acescentado alguns milhões de dígitos a esta cifra maldita e duas vezes maldita.
Num primeiro momento achei graça da solenidade do meu pai, e escrevi o registro brincando. Mas depois de ele me explicar, cheio de reticências, o que me esperava dali para frente, fiquei revoltado. Saí gritando que não contaria degraus porcaria nenhuma e mesmo se contasse, ninguém me obrigaria a escrever a conta em livro nenhum. E tinha mais, acrescentei, não entendo porquê o senhor é tão burro, não apenas por escrever, mas por guardar aqueles volumes de bosta que ocupam o espaço todo, não servem para nada nem para ninguém, a não ser talvez para as traças. Fosse eu, conclui, venderia essas toneladas de papel para reciclagem ou botaria fogo naquela merda toda. Saí batendo a porta. Lembro bem do olhar triste do meu pai quando me virei para ir embora.
Durante um tempo tentei estar à altura da minha bravata. Subia e descia escadas impunemente (acreditava eu). Só que depois de horas e dias passados ainda lembrava do número exato de degraus transpostos. Até finalmente cair em mim para o horror de que se não parasse de contar, ou ao menos de lembrar do que fora contado, não apenas não teria sossego como literalmente entraria em pane. A minha memória ficaria ocupada pelos degraus contados e eu seria incapaz de usar a minha cabeça para o que quer que fosse, como um computador sem mais espaço no disco. Só que não haveria como acrescentar um cartão de memória no meu cérebro. Eu teria me transformado num dos livros depositados na biblioteca da casa do meu pai.
No início evitei as escadas de todo o tipo. Tinha virado um fóbico muito sui generis. Uma vez estava com uma namorada que tem horror de elevador. Nunca entra num sem sofrer de sudorese, palpitações e outros sinais de pánico. Suportava apenas aqueles velhos elevadores de porta sanfona vazada nos quais dá para ver o poço durante a ascenção. O caso é que ela subiu os quarenta lances e ficou sem falar comigo durante um mês pela minha falta de solidariedade em acompanhá-la escada acima. Eu, não apenas não disse a razão pela qual não subira como aproveitei para pontificar, todo cheio de moral, que se a neurose dela a fazia trabalhar subindo vinte andares, não era problema meu. Fizesse análise! O problema foi que, uma semana depois disso, qual Jimmy Stewart em Um corpo que cai, fiquei paralisado perante os três lances que deviam ser superados para alcançar o consultório do ginecologista que faria a curetagem dela. Depois disso, não tive como demové-la da convicção férrea de que, na minha mesquinharia, a deixara passar sozinha pela ordália do aborto. Largou de mim e nunca mais quis saber. Como podia explicar que minha mente não comportava a contagem de mais um degrau sequer?
Foi nesse dia que capitulei. Fui procurar meu pai, que me disse o que, no fundo de mim, já sabia mas relutava em aceitar: apenas registrando as contagens podia esquecê-las e desocupar minha mente engarrafada de degraus. Demorei alguns dias em registrar tudo e tornar-me mais um escrevente do livro eterno da minha família. Até o dia que descobri o PC.
A partir dali foi possível aposentar os livros e substituí-los pela memória virtual do disco rígido. Hoje, depois do falecimento do meu pai e dos meus tios, não sobrou ninguém além de mim para guardar os livros. Virtuais, desta vez. Pelo menos esse prazer tive: queimar várias toneladas de papel num holocausto que teria espantado meu pai pela inevitável lembrança do destino dos judeus de Europa durante o nazismo (pensando bem, a semelhança vai mais longe, já que queimando os registros estou jogando na fogueira de modo simbólico toda minha ascendência).
Sou, como disse, o último da raça dos “contadores de degraus” e não espero deixar descendentes para continuar esta maldição. Ela termina comigo. Ontem, enquanto ouvia o rádio no meu carro tocar Led Zeppelin: “there’s a lady who thinks all that glitters is gold…”, pensei que mandaria uma carta para Robert Plant contando que o único que pode vender uma verdadeira escadaria ao céu sou eu.

Ricardo Goldenberg

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