A história do fim da análise

Eu tenho um nome a zerar
Glauco

Quem se propor a escrever uma
biografia está engajando-se na
mentira, no disfarçe, na bajulação…
A verdade não é acessível.
Freud

Muchas gracias, pero yo consigo
equivocarme solo
Meu pai

Muito embora falar mal dos outros não seja um pecado, está associado a um dos sete capitais, a inveja. Prática natural das comadres, a maledicência é uma forma de gozar da língua da qual resulta difícil se abster. Quem nunca cedeu à tentação do comentário maldoso sobre a reputação do vizinho? Já o interesse crônico de se ocupar daquilo que não é da própria conta está relacionado ao desejo de manter, para si mesmo, a ilusão de uma certa opacidade. Mostrando minha clarividência, o quanto vejo através da máscara alheia, posso acreditar que a minha permanece no lugar. Deixo transparecer que percebo ou conheço algo que meu próximo preferiria relegar às trevas para melhor imaginar-me invisível, fingir que eu próprio não sou visto. Digo indistintamente “percebo” ou “conheço” porque os campos do significado e do visível são homomorfos, propriedade que demonstramos a cada dia com expressões tais como “não querer nem saber”, ou “não querer ver o óbvio”. Tanto as más línguas como o malolhado remetem-nos à ponta de inveja (que é uma ponta, aliás, porque salta à vista) e às precauções a serem tomadas para resguardar nossa boa imagem do ódio do semelhante.

Que nossa prezada (ou detestada) imagem é uma superfície ninguém duvida; não obstante, estamos tão aferrados à crença nas profundezas de nossa alma(1), que cem anos de psicanálise não bastaram para aceitarmos que também nossa fala é pura superfície e que tudo nela está, por dizer assim, à mostra. Nossa língua floresce em inúmeras metáforas desta mistificação originária e, parece, necessária de nossa subjetividade. Quando, por exemplo, digo que tal coisa, no fundo, quer dizer tal outra, ao mesmo tempo que proponho um novo acordo sobre o significado da coisa a que me refiro, afirmo, mediante esta figura marítima das profundezas, a crença na existência de um lugar reservado de meu ser ao qual nenhum olhar teria acesso.

Sem chegarmos aos extremos do paranóico, que experimenta a transparência total, toda vez que temos razões para supor que o outro sabe demais sobre nós, procuramos restabelecer sua ignorância. Lembro de um menino. Sete anos tinha, e morria de saudades do pai, que cortara relações com ele para evitar qualquer contato com a “ex”, mãe do garoto. Nem mesmo sabia onde o homem morava. Inconformado com a situação, durante um dos raros encontros com o pai, pediu a este permissão para inserir seu telefone e endereço na área secreta da agenda eletrônica da mãe, com a promessa de um côdigo de acesso que só ele, o filho, saberia.

Vivemos uma época que favorece esta sensação de falta de privacidade. Todos voyeurs. Esquecemos, porém, que uma janela serve para ver, mas também para ser visto. A Internet, descrita como “janela para o mundo”, é: todos na vitrina. E por que não? O interesse que a biografia voltou a ter recentemente está relacionado com este contexto. A biografia é um gênero literário que me autoriza a ser indiscreto, a desfrutar do mexerico sem constrangimento. O biógrafo me conta tudo que eu queria saber sobre…, sem atrever-me a perguntar. A biografia está situada entre a necessidade de nos acreditarmos inescrutáveis e o desejo de dar uma olhadela no quintal do vizinho. Autorizadas ou não, as biografias tornam público o que devia permanecer privado. Das políticas que regulam nosso tratamento da vida privada me interessam duas, a do avestruz e a do cínico. Aquela se baseia na crença idealista de que esse est percipii, ser é ser percebido: o que não vejo, não é. A outra, a do cínico, instrumentaliza a confusão entre o público e o privado; sua estratégia é ocultar mostrando, e sua tática, a denúncia. Vemos isso todos os dias no jornal, escândalos que servem para disfarçar melhor aquilo mesmo que motiva o escândalo.

No fundo, os segredos que imaginamos nos outros dizem sempre respeito à mesma coisa, a saber, as modalidades de gozar que lhes supomos — e das quais nos consideramos excluídos. Nós, os privados. Colunas sociais diárias, como a de Joyce Pascovitch, estão ai para mostrar-nos vidas nada privadas, ou, melhor, privadas de nada. Claro que a exibição de tamanha abundância não passa de mais uma empulhação. A questão é: por que precisamos destas miragens de homens e mulheres engasgados de ambrosia? A clínica nos ensina que nosso segredo mais prezado são nossas fantasias sobre o gozo que deveríamos ter e não temos. Por mais guardadas que estejam, tais fantasias transparecem em nossos atos (seria mais exato afirmar que a lógica destas fantasias pode ser deduzida de nossos atos).

Ensinamos nossos filhos a zelar pelo nome que levam que, por acaso, é o nosso. Este zelo consiste em evitar que o enredo deste tipo de fantasias, que também, por acaso, são as nossas, venha a público. Não obstante, quanto maior o zelo em evitar a emergência pública deste gozo constrangedor, tanto mais claramente o (me) denunciarei chegada a ocasião. Alfred Hitchcock, contam, não parava de fazer piadas escatológicas, com todos e em todo momento. Pior que ele, parece, só Dalí. Mas esta boca cheia de merda, perdõem a expressão, disfarçava o horror pudico do cineasta, que tremia de angústia frente à perspectiva de ser surpreendido, não digo defecando, sequer na intenção de dedicar-se a tais afazeres. Conta Donald Spoto(2) que se por ventura alguém entrasse no banheiro público, enquanto o Mestre do Suspense estava sentado no vaso, ele levantava as pernas para que seus sapatos, aparecendo sob a porta vazada, não denunciassem que ele estava entregue ao prazer da defecação. Ou seja, Hitchcock falava de merda para ocultar melhor seu gozo anal.

Para os historiadores e os biógrafos as fontes sempre são uma dor de cabeça. Não se bastam a si mesmas. Se uma fonte duvidosa quer ter direito à letra de imprensa, deve ser confirmada por outra e esta, ainda por uma terceira. A cadeia é amiúde infinita, amiúde inútil, porque a soma de fontes pode também ser um engano. Tome-se a certidão de casamento de Perón e Evita, por exemplo, na que um escrivão público da cidade de Junín confirma a veracidade dos dados. O casamento não é falso, ao passo que quase tudo que diz a certidão sim o é, do começo ao fim. No momento mais solene e histórico de suas vidas, os nubentes -asssim se dizia naquela época- decidiram burlar-se olimpicamente da história. Perón mentiu o lugar da ceremônia e o estado civil; Evita mentiu a idade, o endereço, a cidade onde tinha nascido. Embora fossem imposturas evidentes, passaram-se vinte anos antes de que alguém as denunciasse… Nenhum historiador, entretanto, teve a idéia de preguntar-se por que Perón e Evita mentiam. Não precisavam fazê-lo… Mentiram porque haviam decidido que a realidade seria, a partir de então, o que eles bem entendessem. Agiram como agem os romancistas (3)

Existe, é inegável, um quê de decepcionante nas biografias, sobretudo nas melhores, nas mais prolixas e exaustivas. Quanto maior for sua pretensão de dizer a verdade, toda a verdade e nada além da verdade; quanto maior for seu intuito de esgotar o segredo das causas, as molas ocultas das ações insensatas, tanto mais decepcionante será. O dia do juízo final não vale mais que um pum, já disse um poeta alemão. Guy de Maupassant (um romancista) escreveu, em algúm lugar, que a verdade não é verossímil. Para sermos realistas precisamos inventar. A sensação de realidade, necessária para o leitor poder acreditar nos fatos narrados, depende de uma ficção, não da verdade. O realismo em literatura é um gênero, como qualquer outro; um tratamento do discurso em que o autor fabrica uma realidade que seu leitor pode aceitar como tal. O jornalismo também é um gênero (segundo um articulista da Folha de São Paulo, o biógrafo seria um jornalista especializado em vidas). A convenção manda tomar como realidade o que vier a ser impresso no jornal. Que a imprensa não pode mentir é um pressuposto essencial do gênero. Os políticos, quando esbravejam contra ela, chamando-a de mentirosa (o que geralmente acontece quando a inverdade suposta não coincide com seus interesses), estão apoiando-se nesta noção de que a verdade e a realidade são idénticas e a imprensa é seu arauto. A crença em si, porém, nada tem a ver com a verdade ou a falsidade (nem, muito menos, com a realidade) mas com o discurso no qual o narrador nos espera. Não deve ser por acaso que começamos as estórias que desejamos mais ardentemente fazer passar como fatos, que sejam acreditadas, com a expressão: “você não vai acreditar no que me aconteceu…”

Que de nossa história depois de uma análise?

Antes dela, podemos passar a vida contando nossa história a quem quiser ouvir. Quer, para justificar o que fomos ou não conseguimos ser (e devíamos); quer, como diz o tango, para mostrar la vergüenza de haber sido y el dolor de ya no ser (4). Agimos como se nossas misérias e banalidades fossem dignas da atenção senão do aplauso do mundo. (E só ligar a tv aos domingos para constatar como os Santos e Faustos da vida tiram partido deste anseio neurótico.) É de se esperar que depois de uma análise, nossas circunstâncias deixem de ter qualquer interesse para a humanidade.

Que a estrutura de nossa subjetividade se realiza historicamente, nas contingências dos encontros da vida, é tão certo quanto inevitável, mas o relato destes acidentes e do modo como deles nos fizemos sujeitos, não tem nada de exemplar. Porque “futucando bem, todo mundo tem piolho ou cheiro de creolina.[…]Só a bailarina que não tem”.(5) Em nosso romance familiar (a expressão é de Freud), e apenas nele, somos todos a bailarina. Este romance é o quadro dentro do qual gozamos mal e porcamente. Que fim leva o romance familiar, depois de revelada sua natureza de ficção necessária? Digamos que aparece como uma forma vazia, uma matriz simbólica, cujo conteúdo será sempre um projeto que posso ou não querer para mim. Subjetivamente falando, declaro a paz às contingências de meu nascimento, às decisões parentais que me concerniam, e pelas quais sempre reclamei. Deixa de haver culpados por eu não ser a personagem prescrita pelo romance, que também podemos denominar “fantasia fundamental” (o sintagma é de Lacan).

O pai de todos os argentinos, o General Don José de San Martín, era, segundo os livros da História Oficial, um infatigável contador de estórias e produtor de máximas de vida. Uma delas rezava: “Serás o que devas ser, ou então não serás nada.” Esta alternativa entre dever ser ou… nada é o espírito do programa da fantasia fundamental. A cada volta da vida eu me defronto com uma decisão que é só de minha alçada e responsabilidade, relativa àquele programa. Hoje eu consigo apreciar, graças à análise, a fórmula com que meu pai recusa os conselhos não solicitados sobre como deve agir. “Obrigado, ele diz, eu consigo errar sozinho.”

A pergunta pelos destinos de uma história vivida, me faz lembrar a saga dos jornalistas do Citizen Kanede Welles. A procura do significado da última palavra de um homem, que explicaria retrospectivamente o sentido de sua vida. E os psicanalistas? Podemos considerar nossas histórias de casos como uma variante especializada da biografia? Em todo caso, nossos relatórios clínicos trafegam no limite entre o público e o privado; entre a novela familiar e a novela da Globo. No seu Selbstdarstellung, Freud se manifestou neste sentido, para tentar pôr um ponto final no manuseio público de sua vida privada (que ele mesmo iniciara ao publicar a interpretação de seus sonhos). De sua vida, escreveu, só interessava o que por ventura dissesse respeito à ciência (querendo dizer, à Psicanálise). O resto era e devia permanecer privado, não era para ser do domínio público. O problema, em se tratando do fundador da dita ciência, era onde traçar o limite entre o que é do interesse da teoria e o que seria voyeurismo dos leitores, ou seja, prazer de fuçar no modo como o outro goza.

As “psicobiografias”, como eram denominadas antigamente as histórias de caso, sempre me pareceram tentativas, mais ou menos canhestras, de contar a novela neurótica de alguém. Quase nunca disfarçam seu desígnio de dizer a palavra final, de reaver as causas últimas de um destino, enfim, a pretensão de dizer a verdade. Lacan acreditava que declarar o amor da verdade (dos fatos) era sintoma da paixão da ignorância (da causa). Nossas ardentes declarações de amor a Sofia não passariam de cortinas de fumaça, jogadas sobre a vontade de continuarmos acreditando nos motivos de nossa neurose.

Ninguém pode se propor a dizer a verdade, porque esta é um acontecimento não planejável. A verdade será inesperada ou não será.(A palavra “verdade” não é para ser ouvida com maiúsculas. Não tenho a menor pretensão metafísica invocando-a. Nenhuma essência transcendente aos fenômenos.) Trata-se menos da palavra reveladora que da descoberta de que não conduzimos nossa fala. Ela nos leva, de roldão. Os analisandos devem ser encorajados a deixarem-se levar. Não se entregam de bom grado. Agarram-se, como carrapatos, ao que queriam dizer, descartando o sentido que se desprende do que de fato disseram.

— Ele brochou, ontem, apesar dos meus esforços. Eu fiquei chateada, impotente.

— Impotente…

— Pois é, nada me irrita tanto quanto não conseguir manter a ereção.

— A ereção de quem?

— …

É um modo de dizer. Você entendeu o que eu queria dizer.

— Perfeitamente. Continuamos na Quarta.

A psicanálise é um exercício possível para deixar o não sabido tomar a palavra. Para tanto, é necessário ao paciente demitir-se das certezas de Eu (a verossimilhança) e passar a dar crédito ao “outro” que fala nele (a verdade). Demitir-se não quer dizer pedir demissão, porque ninguém poderia oferecer-lhe nada além de uma nova submissão (Ich Ideal), na qual vir a atrelar-se como Eu (Ideal Ich).

São Paulo, novembro de 1996

 

EM TEMPO (6)Durante uma reunião em casa de conhecidos, escutei um curioso comentário sobre literatura. Uma senhora jurou nunca mais ler Borges quando soube que Uqbar não existia (que ainda não existia, como lhe sugeri mais tarde). O  fato de que a crônica sobre Uqbar fizesse parte de um livro denominado Ficções em nada abalara sua crença na realidade histórica deste país, nem tornara mais leve sua decepção ou mais previsível a descoberta da verdade. Não podia apreciar, disse, os ensaios de um erudito que te deixa sem saber se aquilo sobre o que disserta é verdadeiro ou falso.

A reflexão desta crédula senhora me lembrou uma passagem do debate que se seguiu à conferência que acabam de ler. Ruy Castro, com quem compartilhava a mesa de expositores, e que já tinha se lançado a uma defesa apaixonada do gênero non-fiction, concebido como o relato mais fiel possível aos fatos tais como aconteceram (espero não estar lhe sendo infiel ao resumir assim seu longo elogio sobre a tarefa investigativa do jornalista dedicado a escrever uma biografia), fez notar que Citizen Kane — que naquele momento eu invocara para defender meu argumento de que a escritura jornalística não deixa de ser um gênero literário como qualquer outro, e pode ser alinhavada do lado fiction do catálogo, ainda que sua estratégia seja afirmar: “eu digo sempre a verdade” —; Ruy Castro, então, interrompeu minha fala para dizer, com o ar satisfeito de um gato lambendo os beiços, que o filme de Orson Welles tinha um erro fatal no roteiro: ninguém estava lá para ouvir o moribundo cidadão pronunciar a famosa última palavra, razão de ser do filme.

A câmera, com efeito, entra pela janela, a única iluminada do enorme castelo vazio, se aproxima até o enfeite de cristal que Kane, no seu leito de morte, estivera observando; corta para um detalhe sobre a boca do moribundo pronunciando seu derradeiro “rosebud”; corta para sua mão, já morta, deixando cair a bola de cristal, que se espatifa contra o chão; e fecha com um plano geral sobre a porta do quarto, pela qual entra a enfermeira depois de ouvir o barulho do vidro ao estilhaçar-se. Em suma, o cidadão morreu só e abandonado de todos, sem ninguém que escutasse sua palavra final. Ergo, tudo que se segue em decorrência daquele botão de rosa (rosebud), que os jornalistas do filme pretendem fazer desabrochar até abarcar o sentido da vida do falecido, nunca poderia ter acontecido.

Minha única objeção a este perspicaz argumento em defesa da objetividade (7), foi que não me parecia exato afirmar que ninguém estava presente junto ao leito de morte do cidadão Kane. Estávamos Ruy Castro e eu, entre outros: o cineasta ali nos colocara, a favor da verdade e contra a verossimilhança.

Parafraseando Gala (8), digamos que se Orson Welles o fez de propósito, isso seria magnífico, mas se o fez sem se dar conta, seria sublime. A armadilha de Welles, como a de Henry James (9), não está destinada aos incautos. Foi armada para engrampar os lúcidos, que não se conformarão com as aparências. Não há mérito em lograr os tolos ou os indiferentes. Em determinadas circunstâncias, reflete Poe (10), a saída mais inteligente talvez seja agir como um dupe. Enfim, ato falho ou gesto espirituoso, o truque de Welles consiste simplesmente em aproveitar o traço mais característico do cinema — aquele, portanto, em que menos reparamos —, a ilusão do espectador de estar assistindo, através do olho de uma fechadura11 gigante, uma cena da qual está excluído, para fazer cair o público pelo seu desejo de voyeur.

Com efeito, o cinema, sobretudo o cinema americano, toma o maior cuidado para que não apareça, para que se esqueça, a quarta parede, a que falta, e por trás da qual se encontra a platéia. Quando falamos em “narração” cinematográfica estamos usando uma figura de expressão tirada da literatura, porque em cinema não existe narração a não ser quando um ator conta alguma coisa diretamente, como se fosse no teatro. Assim que a câmera começar a nos mostrar o que está sendo narrado, deixaremos de ser ouvintes para tornarmo-nos testemunhas, espectadores, dos fatos em questão.

Por isso, o cinema não sabe mentir, ou, melhor, não tem como dizer “eu minto”. Quando nos logra, toma o maior cuidado de botar a culpa pelo engano numa das personagens do filme; cedo ou tarde, deixa bem claro que estamos vendo cenas“irreais”, do ponto de vista da realidade diegética; dramatizações da versão de uma das personagens de ficção — como a reconstituição de um crime feita segundo orientações do acusado (12). Jamais o cinema mostraria cenas do ponto de vista impessoal da câmera objetiva que, depois, se revelassem falsas. Seria como pedir ao público que não acredite no que vê. Um filme que fizesse isso seria, no melhor dos casos, visto como uma comédia e, no pior, como um absurdo. Fracasso de bilheteria, seguramente.

Orson Welles, então, não está nos contando: “era uma vez um homem muito rico e muito cruel, que morreu sozinho e abandonado, na mansão em que morava”. Orson Welles está nos mostrando Charles Foster Kane morrendo só e esquecido do mundo. E este drama íntimo, que não devíamos estar assistindo, só não nos parece patético e obsceno, porque esquecemos nossa presença impotente frente à agonia do outro, do lado de cá da tela. Até a última tomada do filme, em que os dois planos se separam, estamos na mesma posição dos jornalistas da ficção, ou melhor — e este seria o toque de estilo que propús qualificar de magnífico ou sublime —, as personagens da realidade diegética foram colocadas na mesma posição de saber ou ignorância que nós, a audiência. Elas, como nós, viram Kane morrer pronunciando seu “rosebud” e, como nós, desconhecem o que isso possa querer dizer. Só nos separamos delas na tomada final, quando Welles nos revela, antes de deixar-nos, a chave do segredo: o referente do nome Rosebud. Quase chegando no the end, o diretor corta uma fenda entre as opiniões públicas de um lado e do outro da tela, ao dar a esta última uma informação que aquela não tem (13).

Voltando a nosso debate em terras universitárias; acredito que Orson Welles teria se deliciado vendo um jornalista de verdade confirmar, no próprio gesto de rebaté-la, a tese que os jornalistas de mentira foram chamados a demonstrar, a saber, que nenhuma biografia alcança  o real, apenas versões. Ruy Castro, preocupado como estava em defender o excelente trabalho de pesquisa de campo feito na sua última biografia, contestado (como se soube depois) por interesses familiares do biografado, não podia deixar de esquecer que, como espectador do filme de Welles, participava da pesquisa biográfica de Kane, em pé de igualdade com seus colegas da ficção (atores do Mercury Theatre).

A última tentação, em relação à armadilha de Welles, é acreditar-se livre dela quando se percebe seu mecanismo. É nesse momento que ela funciona com maior eficácia. Porque denunciar a falta de verossimilhança do filme só pode ter o intuito de encontrar refúgio no que o último grande utopista antes de Marx, Hegel, denominava a racionalidade da realidade. Recusar-se a seguir os passos dos jornalistas atrás do sentido de “Rosebud”, em nome do realismo, nada mais é do que uma profissão de fé. Porque a crença de que os fatos falam por si próprios, fora de um discurso que os apresenta como fatos, não é apenas uma crença mais; é uma verdadeira política, na qual a mídia (e não só ela) está, hoje, mais engajada do que nunca.

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(1) No es lo mismo ser profundo que haberse venido abajo.  Disse “El Mendieta”, cachorro-filósofo do “gaucho Inodoro Pereyra”, personagem desenhada pelo quadrinista santafesino Fontanarrosa.

(2)  Spoto Donald, The dark side of Genius , New York: Max & Schuster, 1982.

(3)  Eloy Martínez Thomás, Santa Evita , BsAs: Planeta, 1995

(4)  Gardel, Le Pera, Cuesta Abajo .

(5)  Buarque, “A bailarina” in Circo Místico

(6)  O leitor terá percebido o final um pouco abrupto desta conferência. Acontece que havia um quarto e último ponto nela que resolvi deletar. Precisamente o que dizia respeito ao tema do título: a história do fim da análise. Falava nele da análise do analista; da análise terminada por direito próprio e de sua função de habilitação para se exercer o ofício de psicanalista. Assuntos que já foram discutidos até a exaustão durante os últimos trinta anos. Outros já falaram mais e melhor do que eu sobre esta questão. Alguns, porque tinham terminado suas análises e viveram para contá-lo; outros, porque não tinham terminado mas acreditavam que deviam, confirmando assim o ditado de que “quem sabe, sabe, e quem não sabe, ensina”.

(7) Que, aliás, não é de Ruy Castro mas da crítica americana de cinema Pauline Kael (cf. The Citizen Kane Book ; edição comemorativa dedicada a este filme, cujos dados editoriais não lembro, mas que pode ser consultada na biblioteca da ECA-USP).

(8) Prefácio a El mito trágico del Angelus de Millet. Barcelona: Tusquets, 1980

(9) The Notebooks of Henry James, (eds) Matthiesson & Murdock, OUP, New York, 1976

(10) Cf.  “A carta roubada”.

(11) Há de se convir que a figura do olho cabe com mais precisão ao buraco da fechadura que a qualquer outro buraco.

(12) Roshomon , de Kurosawa, seria talvez um bom exemplo deste cinema agnóstico. Uma série de versões sobre um fato, que não são decididas pela autoridade suprema do realizador. Ele não opta por nenhuma, nem costura as versões, contraditórias entre si. O cineasta nos deixa com a impressão de que os fatos são incognoscíveis.

(13)  Buñuel toma sua distância irônica deste efeito, quando, em seu O charme discreto da burguesia , nos mostra o grupo de convidados a um jantar que descobre, para seu espanto, que a mesa à qual sentaram está montada sobre um palco e que, do outro lado há uma platéia esperando por sua atuação. A realidade diegética: o jantar, aparece engavetada entre duas platéias: uma dentro e outra fora do filme. O resultado é cômico.

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